“Esperamos ponderação e diplomacia para que possamos manter uma boa relação com o importante mercado argentino, hoje segundo principal destino do calçado brasileiro no exterior”. A declaração, em tom prudente e diplomático foi feita pelo presidente-executivo da Abicalçados, Haroldo Ferreira em entrevista exclusiva ao Comexdobrasil.com.
Com 36 anos de atuação no setor, o gaúcho da cidade de Rolante, com pouco mais de 20 mil habitantes da região do Vela do Paranhana, Haroldo Ferreira procura tratar com serenidade e habilidade questões ligadas às relações com o país vizinho, segundo maior parceiro comercial do Brasil em todo o mundo. E o faz no exato momento em que autoridades do primeiro escalão do governo brasileiro, como o presidente Jair Bolsonaro e o ministro da Economia, Paulo Guedes, orquestravam uma série de declarações ácidas e nada construtivas relacionadas com o processo eleitoral vivido pelos portenhos e sobre o futuro das relações entre Brasília e Buenos Aires no futuro próximo.
Na contramão de declarações explosivas de Bolsonaro (“O Brasil, deixa o Mercosul, caso a Argentina crie problema”) e de Guedes (“O Brasil nunca precisou da Argentina para crescer”), Haroldo Ferrante procurou tratar as questões ligadas ao relacionamento com a Argentina com a sobriedade e polidez de um gaúcho que, até mesmo pela proximidade geográfica, conhece como poucos a importância que a Argentina tem para o comércio exterior brasileiro e para o setor calçadista em especial.
Habilidoso, ele afirmou que “penso que as pautas política e econômica devem ser separadas. Os governos passam, os acordos ficam, os ganhos econômicos e sociais também”. E, ao contrário de pessoas investidas em cargos de muito maior relevância e responsabilide que o seu, destaca que “torcemos por uma rápida recuperação dos irmãos argentinos, independente do governo que vier a assumir o poder Executivo no país”.
Essa postura cautelosa e desapaixonada não impede o presidente da Abicalçados de externar sua preocupação, sóbria e consciente, com a possibilidade (na verdade, uma quase certeza) de a Argentina voltar a ser comandada a partir do mês de novembro por um governo kirchnerista: “evidentemente, um possível governo de Alberto Fernández, mais alinhado à esquerda, pode trazer novamente o fantasma do protecionismo, praxe dos governos Kirchner”.
Ainda assim, é no mesmo tom diplomático e criterioso que ele antecipa a maneira, como, em seu entendimento, o governo brasileiro deverá pautar suas relações com seu terceiro maior parceiro comercial. Segundo ele, com a possível substituição de Maurício Macri, aliado praticamente incondicional de Jair Bolsonaro, por Alberto Fernández (leia-se, com a volta de Cristina Kirchner ao poder), “vai exigir mais empenho nas negociações para que o fluxo de comércio não seja prejudicado. Porém, acredito que o mais importante, neste momento, seja uma recuperação econômica que traga a demanda de volta para aquele mercado”.
Mercosul-União Europeia
É com a mesma prudência e discrição que o presidente da Abicalçados avalia as perspectivas de implementação do acordo firmado no final de junho entre o Mercosul e a União Europeia. De início, ele afirma, sem hesitar, que vê com bons olhos o acordo firmado depois de quase 20 anos de negociação entre os dois blocos.
Ao aprofundar-se na análise do tema, sublinha que “a implementação, porém, vai depender da aprovação em cada um dos países. Evidentemente, a celeridade pode não ser a mesma, o que pode –e até deve- atrasar a implementação do acordo. De toda forma, estamos otimistas e pensamos que o acordo deve ser firmado ainda durante a atual gestão. Sobre a situação política, esperamos que essas diferenças sejam sanadas o mais breve possível e que se separe a pauta política da econômica. Independentemente de governos, de posições ideológicas, o acordo de livre comércio será benéfico para a economia de ambos os blocos”.
Exportações
Na entrevista, Haroldo Ferreira falou também sobre a balança comercial do setor calçadista. Segundo ele, “trabalhamos a exportação como uma estratégia perene, não um negócio ocasional. A exportação deve considerar uma fatia da produção, nunca a totalidade. A ideia é estar prevenido diante de crises econômicas, tanto domésticas como no exterior. É aquela história de nunca colocar todos os ovos numa cesta só”.
O presidente da Abicalçados se reporta aos anos de 1980/ 90 ao lembrar que “podemos citar um exemplo malfadado na história, quando muitas indústrias calçadistas, especialmente na região do Vale dos Sinos (Rio Grande do Sul), empolgadas com a valorização do dólar sobre a moeda brasileira, no final da década de 1980 e início dos anos 1990, acabaram destinando quase toda a produção para o mercado internacional. Quando chegou a implantação do real, em meados daquela década, com a sua equivalência monetária ao dólar, muitas dessas empresas simplesmente fecharam as portas, porque a exportação deixou de ser tão vantajosa e o nosso produto se tornou muito caro no mercado internacional”.
As lições acumuladas naqueles anos levaram a indústria calçadista gaúcha a rever suas políticas de ação e, conforme destaca Haroldo Ferreira, “passamos a trabalhar com nossas empresas associadas à cultura de que a exportação deve fazer parte da estratégia das empresas como posicionamento de produto, imagem de marca, etc. Acreditamos, sim, que seja importante crescer na participação internacional, porém de forma planejada e organizada, como forma de se manter nos mercados mesmo diante de oscilações econômicas internacionais”.
A prudência e diplomacia usadas para abordar temas delicados como a questão do futuro relacionamento com a Argentina sob um governo kirchnerista também marcaram o tom empregado por Haroldo Ferreira ao analisar os números da balança comercial do setor calçadista.
De janeiro a julho, as exportações de calçados totalizaram US$ 565 milhões, com uma ligeira alta de 3,6% comparativamente com o mesmo período de 2018. Os Estados Unidos foram o principal mercado para o produto brasileiro, com vendas no total de US$ 120 milhões no período (correspondentes a 21% do volume embarcado para o exterior). A Argentina ocupou o segundo lugar do ranking, apesar da forte queda de 37,8% nas vendas, com um total de US$ 55 milhões.
Visto isoladamente, o mês de julho deu margem a um sentimento de otimismo mesclado com cautela. No período as vendas externas registraram alta de 65,2% em volume e de 44,4% em receita.
Com base nesses números, o presidente a Abicalçados afirma que “acreditamos que teremos um leve incremento nas exportações. As vendas de verão foram satisfatórias, embaladas especialmente pelo câmbio favorável e também pela guerra comercial entre Estados Unidos e China, que fez com que importadores americanos, nossos principais compradores no exterior, buscassem alternativas de fornecimento de calçados fora do país asiático como forma de precaução diante de tarifaços”.
Assim, é com otimismo contido que Henrique Ferreira avalia as expectativas da balança comercial do setor calçadista para este ano: “a expectativa, diante do cenário, é de que as exportações sigam mais elevadas do que em 2018. Temos uma previsão que oscila entre 5% a 7% até o final de 2019. Por outro lado, é importante frisar que a base de comparação, de 2018, é muito fraca, e de que mesmo diante de um cenário de crescimento ainda estaremos muito longe de performances como a de 2007/2008, quando chegamos a embarcar o equivalente a quase US$ 2 bilhões em calçados. Em 2018, as exportações somaram US$ 976 milhões”.
Fonte: www.comexdobrasil.com